V Colóquio da APELO - Coimbra



Já estão abertas as inscrições para o V Colóquio da APELO do Coimbra, intitulado “Luto ou não? Eis a questão…”.
O Colóquio irá realizar-se a 22 de Outubro de 2010, no Auditório do Instituto Universitário Justiça e Paz.
Para submeter uma inscrição, basta enviar um email para formacao.apelo.coimbra@gmail.com ou contactar o 963378974, ou o 914271293. Aquando da inscrição é necessário disponibilizar os seguintes dados:
  • Nome
  • Morada
  • Email
  • Contacto Telefónico
Para estudantes, o valor da inscrição é de 10€, para não-estudantes, o valor da inscrição é 15€.
Disponibilizamos, para download, o cartaz com o programa detalhado do Colóquio.
Para mais informações ou para esclarecimento de qualquer dúvida, basta enviar um email ou entrar em contacto connosco!

Encosta a Tua Pele ao Papel…


Teimo em ilustrar-te, em abafar o silêncio da casa com fotografias. Teimo, não consigo fugir, em ter-te constante e eterna, fundida numa vida que se torna difícil de viver sem ti. A tua pele confunde-se com o papel. Encosta-te, intensifica-te assim. Já não sabe a ti, já não cheira ao teu corpo, já não te sinto os sinais marcados tresloucadamente numa pele esfalfada. Às vezes olhava-te (se calhar olhava-te sempre) e imaginava que tinham derramado um balde de tinta castanha sobre ti, um balde cuja tampa teria uns buraquinhos (uns maiores que outros) que te marcariam a casca que sempre me protegera e que se esqueceu, a dada altura, de te proteger…
O impulso de pintar as paredes com a tua presença artificial é maior que eu. Tiro todas as fotografias das outras molduras, é quase inaceitável olhar para outros quaisquer se és tu que me fazes falta. E mesmo depois dele… já nem sei por quem se chora. Ainda assim, recolho-te fervorosamente e descubro que estás em poucas. Devia ter sugado mais de ti, tudo o que pudesse. Deveria ter sido mais obsessiva em captar-te.
Guardo-te aqui comigo, entre quatro rebordos de cores. Encho paredes, enfeito mesas, inundo o quadro de cortiça. E tenho-te, como posso. Como tu me deixas. Só me deixas ter-te assim. Ter-vos assim. Que confusão… tu, vocês. Parece-me, sentidamente, angustiante a constante alternância de termos e realidades.
As fotografias… são tantas, mãe…tantas e tão poucas.
Preciso-te tanto. E aqui não é tanto e tão pouco.
A fotografia já não me chega: como se pode ter um amor platónico? Não sei se somos humanamente capazes. Falta o corpo, não sexual, mas fraternal, harmonioso, benévolo. Falta a companhia, a agremiação. As tuas linhas, os contornos da roupa que se deixam cair sem ti; o som das gargalhadas soltas (como eram fartas e cheias as tuas gargalhadas); as tuas mãos… Estou capaz de as desenhar na perfeição. As tuas mãos, fortes no que a pele guarda, determinadas no alcance, dedos curtos e gordinhos, unhas compridas como baluartes, demonstrações vivas dos genes trespassados entre a família, veias bonitas e escondidas.
Mãos seguras que me estendem o biberão, o outro braço agarra-me com firmeza e, tu, olhas-me como se nunca me tivesses visto (e na verdade só me vias há alguns meses) e eu devolvo o olhar a uma qualquer câmara que nos roubava aquele momento. Um olhar vivo, límpido, de uma bebé feliz. Acredito que sim. Pareces uma menina com um rosto frágil que viria a ser cansado e enrugado, pela flacidez das carnes que se perderam nos litros de quimioterapia. Pareces a minha mãe. A que quero ser. A que tenho medo de não vir a ser. Pareces mesmo tu. Meu amor. Pareço-te, dizem-me. Ainda bem. Meu amor.
Vem… Encosta a tua pele ao papel para te poder abraçar. Assim não consigo, por muito que me esforce (e juro-te que me esforço exagerada, árdua e diariamente para te reinventar e tocar) … assim não te sinto. Será que não te tenho, assim? Não vos tenho?
Eu encosto-me, pronto… já dei o primeiro passo. Faltas tu, agora. Tens faltado, sempre tu. Por favor… toca-me como antes. Permite-me esse abraço quando a noite chega. Permite-me o teu colo (que escabrosa saudade, mãe… do teu colo tão incondicional). Quero-te aqui, para mim, mesmo que por um segundo diário. Um só segundo.
Veste o teu casaco e vem daí… deve haver, algures, uma porta secreta entre esse sítio isolado onde estás e este daqui. Sai das paredes, vence os vidros das molduras. E salta…anda, força. “Upa”, como me dizias. Estou à tua espera. Não encontras a passagem? Eu sei que se depender de ti tu vens… eu sei, mãe. Ele deve querer ficar… precisa de descansar. E eu entendo, sabes? Porque, afinal… afinal ele tinha razão. Isto pode tornar-se tudo muito pesado. Viver, na depressão, dói muito.
Mas descobri, nos outros e em mim, em dias que haveriam de vir, que é possível sobreviver, melhorar. Não abandonar a dor, aliás…ela não nos abandona. Mas (sobre)vive-se com ela. De verdade. Temos apenas de aceitar que o despertador toca de manhã e as pernas tem de se mexer, os cobertores tem de ser empurrados para trás. Toma-se banho. Veste-se a roupa, não temos de ser estrelas de uma passadeira vermelha. Temos apenas de fazer algo, o que nos for possível, para sentir alguma segurança. De dentro de nós e de dentro do espelho. O possível. Não o melhor. Não o exigido. O possível. É este o lema.
Colocas-me desde sempre e para sempre, entre as flores. Porque, aí, ficava perfeita, pensavas tu. Uma fotografia não era, para ti, fotografia de jeito sem flores em algum prisma ocular. Estamos sempre no meio delas… será por isso que me encontro agora contigo através delas? É caso para dizer que podias gostar muito mas não precisavas de te precipitar. Não tão cedo. Desculpa… humor negro.
Não assim. Não agora.
È sempre com se pensa: não agora, não assim. Nunca é tempo. Nunca é dia. Não há momento para (se) perder.
Colocas-me nas flores, nos jardins, nos parques com cores, com sabor a vida, com aromas perfumados e leves, como as saias que gostavas de vestir. Soltas, nas pernas, com o caminhar, mesmo que não envergasses um corpo de medidas escrupulosas. Eram as tuas medidas, no teu corpo, na carne que fez a minha. Era essa barriguinha que, em bebé me adormecia ao calor do teu coração. Quando me contavas que me adormecias assim… deitavas-te e estendias-me (pequenina, a menina…) no teu colo, guardavas-me entre o teu peito e o útero de onde me tinhas lançado. Assim me deixavas ficar, enrolada na manta que ainda hoje guardo. E, acredito eu, assim criámos desde logo uma ligação inquebrável com as armas humanas. Permitias-me aquele sono, aquele adormecer tranquilo, toleravas a minha entrada em ti, mesmo que simbolicamente e do lado de fora. Assim eu te redescobri nos teus ritmos de dentro, pele com pele. O meu coração pequenino e fraquinho (ou não…pelo que se tem vindo a comprovar) a fazer sons com o teu. O teu, maduro, determinado, maternalmente obstinado. Vinhas de ti, para mim, e eu acalmava-me e deixava-me descansar para a noite… descansar de tantas horas de sono e alimentação! Começava a guardar-te dentro do meu baú de recordações. Tu embrulhavas-me com a manta que, mesmo no verão insisto por vezes em dobrar sobre mim. Com um calor de morrer (curiosa a palavra, hum?!) embrulho-me nela só para te imaginar. E aquela manta velhinha e desbotada veste a tua pele, os teus braços sobre mim, o teu corpo que me acolhe quando me sinto tão exausta. Se imaginar, com muita força, ultrapassa qualquer fotografia e alcanço-te… Finalmente.
Finalmente... Inspiro fundo e quase que consigo bater no topo do duodeno.
Tocas-me como me fazias em bebé. E sinto que me abraças, quando aperto os meus braços um no outro e faço de conta que um deles é teu…
O teu e o meu, juntos e entrelaçados. De novo, como se pode.
Tenho-te como posso. Como a vida deixa.
Preciso-te tanto…
Preciso-me tanto, como quando era contigo.
Preciso-te, até para te chorar. Será que não saberão disso?

Ana Rocha S.

A APELO deseja a todos a possibilidade de (se) descobrirem (em) férias


Férias são como feriados seguidos, ligados como correntes de rebuçados: com tamanha ânsia de começar que até se pode ficar atordoado com o excesso de açúcar que invade a alma. O cérebro alucinado pelo vazio repentino da pausa.
Férias não são férias de algo, são a porta aberta para procurar o caminho que (antes, já em nós) se silencia no som do relógio das rotinas.
(Alguns dias de) Férias são abraços de mães e filhos todos agarradinhos ao coração, sem apertar muito, sem sufocar… Mas com medo do fim…
Férias são cerejas que nos agarram as mãos juntinhas e não nos deixam contentar só com uma.
Férias são fotografias antigas descobertas numa arca velha, cheia de pó de amor e memórias.
Férias são passeios no balanço do ar fresco do fim de dia ou raiados pelo sol da manhã: passos seguros do repouso do corpo, do sossego da alma, da pacificação (esforçada) do pensamento.
Férias são relógios roubados ao tempo e lançados ao mar, pijamas prolongados no dia, lençóis gastos do sono, água enamorada do corpo e pés descalços na terra.
Férias são telefonemas para o céu que habita em nós e que se esconde pelas nuvens dos afazeres e das tarefas e das obrigações e das responsabilidades e do “tem de ser”, “agora não posso”, “Fica para amanhã ou outro dia?”. Fica… Fica sempre alguma coisa nem que seja o pensamento preso na corda de rapel, entre o real e o sonho.
Férias não deixam ninguém ficar preso no amanhã.
Férias são revistas cor-de-rosa. Não essas, estas: as que se fazem com o bordado dos sonhos, as que se encandeiam de desejos de aconchego e ganham asas de anjos memorizados. As que se desenham com lápis de colorir novinhos em folha e trazem afiadeiras com princesas e caixinhas discretas para preservar o lixo da afia. As que ficam a cheirar bem como o pão-de-ló amarelinho, de ovos caseiros, a sair do forno. As que vestem vestidinhos brancos, leves e soltos e sobem com o vento obrigando-nos a fugir dos seus beijos não vá descobrir-se a cor das cuecas!
Férias são danças em passos de bebé, sem pedir licença para saltar para o baloiço (pendurado de uma nuvem) e dar aos pés criando ritmos cardíacos de afectos expressos no corpo.
Férias são pessoas, gente, terras, lugares, sítios, nichos, ninhos em mim, em ti, em nós. Nós, que fomos. Nós, os que hão-de vir.
Férias não são pausas, nem buracos negros no espaço da existência de cada um.
Férias são histórias escritas em livros que mesmo não sendo novos, trazem cheiro a novo: criam a esperança de recomeço, de renovação, de viagem interna. Entrar e sair de nós, desenhar os dias em palavras, entrelaçar páginas soltas no livro. Entrelaçar o que e os que guardamos em nós. Dar-lhes ar, respirar neles e com eles. De novo. E ainda. Escrever (em silêncio, pensando-os e pensando-nos). Descobrir o final feliz e seguir caminhando com ele debaixo do braço, dentro da memória, ao lado do coração, em cima do céu que “carregamos”.
Férias também são incêndios: dentro de nós. Quando a saudade arde.
Férias são tempos. Permissão de tempo. Momentos. Escuta de cada momento e assim a criação radiofónica de vontades: ler, escrever, sentir, dançar, curar, caminhar, respirar, amar, lembrar, abraçar, desejar, sonhar. Ser.
Férias também podem ser águas em nós, quando acalmam o incêndio brotando dos olhos as fontes.

F de fonte de paz (procurada), família.

E de etéreo. Eternas pessoas em nós.

R de rir muito, com cócegas desde os pés ao coração saindo pela pontinha dos cabelos gastos pelo sol que irradia dos olhos de quem nos quer bem.

I de ir e galgar pelas ruas que se traçam dentro de cada um. Descobrirmo-nos assim.

A de amor presente, lembrado, tangível, pensado.

S de sabor: gelado de limão e caramelo e café e ainda regado pelos braços de um mar de chocolate derretido.


Ana Rocha S.

Um dia, aconteceremos juntos...


Ninguém sabe o que é morrer. Nem ninguém parece desejar saber…é sempre melhor, mais acessível ao coração, fazer de conta que isso nem existe… Passa-se a palavra aos outros. Como naquela brincadeira das crianças em que o toque (quase fugidio) serve de ponte para “passar a palavra”. Nesse jogo, às gargalhadas infantis junta-se a mão no braço, a rapidez da frase a passar ao outro, a vontade de se libertarem da palavra como se fosse uma praga do “mundo das bruxas”. Também nós, que nos dizemos mais crescidos, tentamos lançar algumas palavras e ideias para um mundo fora de nós. Distante, pelo menos.
A morte parece ser uma sanguessuga que só gosta do sangue alheio, nunca do nosso. E por isso, ainda que de surpresa, por vezes falta-nos o ar e descobrimo-la colada a nós. Afinal… sempre nos toca e atinge o nosso sabor visceral. Não só dos outros. Não é só com os outros.
É estranha e estranhada. Mas entranhada também.
A verdade é que ninguém voltou para a contar, nem para falar do que se vê, de lá, para cá. Ninguém sabe. Ninguém fala. É como se, ao tocar-lhe, tocássemos a nossa ausência, a verdade de uma existência no fim igual, no fim desnudada, no fim sem nada de nada. Igual para todos. Alguém disse, um dia, que a morte é o que nos torna iguais.
Será mesmo? Iguais ou especiais aos olhos de quem nos amou?
A morte. É a morte o nosso motivo maior de movimento e criação. Essa senhora que nos aparece, sem machado, sem foice, sem mantos pretos e desbotados. Apenas aparece e vê-nos sentir um desmame intenso e confuso. E deixa-nos chorar, sem voltar atrás, sem amolecer, sem se alterar. Não se centrifuga na dor dos que ficam, não se antecipa na dor dos que a pedem. Aparece, apenas. Criada. Chamada. Chegada.
Ei-la. Por entre nós, algures embotada. Infelizmente petrificada…cientificada.
Coragem. É o que mais dizem. Ou fazem que dizem, com palavras envergonhadas pelo desconhecimento da sua intensidade. Pedirem-nos coragem quando a perda se assemelha, ainda, atroz parecerá quase ofensivo…
Por vezes acredito que o que dói mais na tristeza não é senti-la, por mais desesperante e inquietante que seja, é a possibilidade (sequer desenhada a lusco-fusco) de não (o não do nunca) desaparecer…ou aliviar. De ser sempre e eternamente assim. O mesmo medo que a morte carrega entre nós: o interminável, indiscutível, insolussionável.
O sorriso pode ser difícil. Efémero. Infundado. No aparecimento, no prolongamento. Num disfarce de um Carnaval de Inverno. Mas um dia, um dia… as cores regressão às máscaras de tal forma que estas se deixam cair naturalmente. Um dia… Acreditem apenas, sempre com a saudade no coração. Ainda que se sintam tão partidos como bonecas de porcelana. Ainda que as pernas não respondem ao despertador, nem à hora, ou sequer aos movimentos, às vontades impingidas pela responsabilidade, pela premência de sobreviver. Um dia… Um dia.
E até esse dia? Compreende-se a ansiedade da pergunta… Até esse dia, permitam-se ao direito de sentir o cansaço. Reconheçam que o corpo chega a estar exausto de vida, de peripécias, de mudanças, de terramotos, de invenções, medos, perdas, sangues, discussões, cores nuas. Ausência. O vazio é como o silêncio: há momentos em que pesa mais do que qualquer pedregulho. Há segundos em que é um barulho, vácuo, ensurdecedor. Nem os tímpanos, já latejantes, aguentam a angústia da ausência instalada pelos corredores de uma casa. Corredores onde antes havia cheiro, pele, pessoas, vida, nomes, vozes. “Longe do olhar, perto do coração”. E antes havia cheiro, sons, vida, discussões, risos… agora… também, na memória, nas histórias contadas, nas fotografias, na povoação da casa, (re)criada.
Se há dias, há momentos, há segundos… insuportáveis... há, também, a descoberta de que ainda se respira. Acordem todos os dias e descubram, no início da dor, que respiram. Quando a dor nos atinge é apenas essa a tarefa que se propõe. E um dia, descobrirão… acreditem que descobriremos juntos… que há algo.
Há. Podemos nem sempre saber o que há. Mas há… deve haver. Do verbo haver, não do verbo existir. Mas um dia, será do verbo existir. E noutro dia, ainda, do verbo acontecer. Directamente do coração da APELO, lanço-vos as rédeas da esperança. Um dia, mais do que sobreviver, haver ou existir, aconteceremos juntos. Em memória, sempre pela memória. Não nos perguntem tudo. Um dia falo-vos das perguntas… Hoje, partilho a esperança de alguma razão para descobrirem um sorriso, ao acordar. Lembrem-se, quando estiverem para adormecer ao pensar no dia seguinte, que nem os contos de fadas nos apresentam a eternidade. Indicam-nos, sim, a “única coisa que pode suavizar os estreitos limites da nossa passagem por este mundo: a formação de uma ligação verdadeiramente satisfatória com outrem”[1]. Na verdade, apenas através das ligações afectivas com outras pessoas é que conseguiremos atingir a suprema segurança emocional.

Ana Rocha S.

[1] Bettelheim, B. 2003. Psicanálise dos Contos de Fadas

Morrer é só não ser visto


Autor: Inês de Barros Baptista
Editora: Planeta

Morrer é só não ser visto, constitui-se um livro potente na forma como, mergulhando em relatos daqueles que sofreram a perda de alguém amado, somos levados a sentir uma suave brisa de reconforto e esperança.
Inês de Barros Baptista permite-nos experimentar a dor da perda e a consciência de finitude, ao mesmo tempo que nos permite aceitá-la como um capítulo integrante da vida, ainda que se constitua uma tarefa árdua e, nem sempre, exequível sem ajuda.
Ao longo do livro, encontramos os testemunhos da própria autora, de José Luís Peixoto, Rosa Lobato Faria, entre outros. Nas suas linhas, tão cheias de dor e esperança, somos tocados pela força que, em cada testemunho, é transmitida.
Um livro que aconselhamos a quem experimentou a perda como uma dor atroz e, a quem, de uma forma directa ou indirecta, é tocado por esta realidade.

A Escada Velha de Madeira


A escada velha de madeira encostada ao tronco da árvore faz crer que ainda há vida. Aqui, ali, lá. Antes, agora e depois. Contigo e, ainda assim, sem ti. Faz crer que ainda há vida, sem ti. Quando lanço o olhar, além da janela, salto mentalmente da varanda e caio como um gato, de pé e com sete vidas (o que não sei se quero ter), no jardim. Quando lanço o olhar além desse vidro alto vejo-te percorrer o carreiro antigo.
Vejo-te como se estivesse louca, mas sem o estar. Eu sei que não estou. Não estamos. Não estão.
Quando lanço o olhar além da janela interrogo-me… porque insisto em abrir o portão durante o dia? Mas… se ninguém me chega? Ninguém me vem visitar? A casa cheira à perda… O tempo passa e marca o compasso do suposto “já devia estar tudo bem”. A incompreensão rodeia-me. Estendem-se braços e mãos infinitas e ombros bons e abraços calorosos, numa quase fusão de almas ligadas pelas linhas das lágrimas… no entanto, uma semana, um mês, dois meses, um ano depois: “Tudo já deveria estar bem”. Não entendo… dói muito. Dói a quem carrega a perda, porque o vazio será transformado com contornos mais leves mas não deixa de existir. Porque é que tudo existe para ser negado?
A casa deve cheirar a morte, a lembranças. Deve cheirar.
As pessoas devem ter medo. Devem ter.
Eu… não. Eu alcanço-te no silêncio dessa minha rouquidão, que te chama com a lembrança, com a imaginação. Nós todos, um dia, depois desta caminhada alcançaremos essa lembrança.
Imaginar é diferente de lembrar. Mas a procura é permanente. A procura, um acto, uma vontade intrínseca, uma chama pura e ardente de nós para um mundo que de repente parece vazio. Na perda de alguém, ou algo, a eterna procura. Procurar obriga-nos a bombear sangue ao coração. Procurar, procurar por quem perdemos. Falar, falar de quem perdemos. Lembrar, lembrar. Tudo, num cansaço hercúleo, um sentimento de pertença que nos falha. De tanto procurar pode ser que um dia consigamos pertencer.
A escada velha de madeira faz crer que alguém a trepa, mesmo que só de vez em quando, mesmo que com medo das alturas, mesmo que olhando sempre para baixo… Mas, não se olha para baixo para ver se caímos, porque isso sente-se na hora, com a dor, com o relâmpago do impacto. Olha-se para baixo, com medo que o chão já não esteja lá, que tenha desaparecido como fumo num dia de nevoeiro. Há vezes em que o chão se some no ar, funde-se no vento e deixa-nos no vácuo. Como quando os vemos partir. Como quando dizemos adeus depois de um beijo. Como quando descobrimos a metamorfose da relíquia do primeiro amor. Como quando olhamos o sol que se põe.
Há vezes em que se sobe a escada (como se não bastasse ser velha e perigosa) e se olha para baixo. A medo. Não de cair… Olha-se para baixo na procura, mortificada, de descobrir se ainda há quem nos segure. De imaginar o chão, de acreditar que mesmo sem ver a base, a escada pode estar segura. Acreditar sem ver. É a maior prova que nos fica depois da morte… Acreditar-vos: algures pendente num purgatório intranquilo, instável mas possível…
Sem eles, sem ti, vocês sem eles, vivemos no possível. Nem no bom, nem no mau, nem no ter ou não ter, mas no possível. Um possível que um dia será mais nostálgico do que doloroso… Mais nostálgico, do que doloroso. Respirem fundo.
Imaginem o mar: longo, infinito, azul na certeza da limpeza, tranquilo, apelativo. A água pura, como tento sentir dia após dia, o que tantas vezes falha, chama e embala. Um dia, no mar tranquilo, apelativo. E imagino que caminhas até mim. Falas-me como se não tivesses morrido. Tocas-me na alma e renovas a força do coração.
Há futuro.


Ana Rocha S.

Amar Quem Está tão Próximo da Morte


Esta estação do ano podes vê-la
em mim: folhas caindo ou já caídas;
ramos que o frémito do frio gela;
árvore em ruína, aves despedidas.
E podes ver em mim, crepuscular,
o dia que se extingue sobre o poente,
com a noite sem astros a anunciar
o repouso da morte, gradualmente.
Ou podes ver o lume extraordinário,
morrendo do que vive: a claridade,
deitado sobre o leito mortuário
que é a cinza da sua mocidade.

Eis o que torna o teu amor mais forte:
amar quem está tão próximo da morte.


William Shakespeare

Preparação do V Colóquio da APELO de Coimbra

O centro da APELO de Coimbra encontra-se a preparar o V Colóquio da APELO de Coimbra. A realização deste mesmo Colóquio está prevista para o dia de 22 Outubro de 2010. Este ano, o Colóquio irá contar com temas diferentes daquilo que é o mais habitual nesta temática do luto.
Será abordado o tema do luto pela perda de identidade, seja ela por factores associados à perda da Cultura ou à perda de emprego. Ainda nesta linha, iremos abordar os mais diversos factores inerentes à perda dos sem-abrigo e o luto que os mesmos vivenciam.
Abordaremos, ainda, a temática do luto associado a outras perdas, como no caso do divórcio, na ruptura no namoro, no caso de aborto ou, ainda, quando o casal, com o nascimento de um filho deficiente, perde múltiplos sonhos, projectos e expectativas.
Por fim, durante a noite, haverá uma tertúlia em que será debatido o tema da Eutanásia, em que os mais interessados estarão convidados a participar.
Para o Colóquio, as inscrições já estão abertas e podem ser feitas para o seguinte email: apelo@coimbra.pt. Para estudantes, o valor da inscrição são apenas de 10€. Para não estudantes o valor da inscrição será de 15€. Os valores mencionados serão, apenas, efectivos para inscrições até o dia 4 de Outubro.
Com a maior brevidade possível, o centro da APELO de Coimbra terá mais novidades ao que à realização do Colóquio diz respeito e faremos chegar, junto de todos os interessados, mais informação acerca do mesmo, bem como o programa do Colóquio detalhado.

Assinatura do Protocolo de Cooperação entre o Instituto Universitário Justiça e Paz e a APELO

No passado dia 2 de Julho, o centro da APELO de Coimbra assinou, com o Instituto Universitário Justiça e Paz, um protocolo de cooperação entre ambas as entidades. Este protocolo tem como objectivos crucial a criação de respostas de apoio (psicológico) junto da população do Ensino Superior (quer esta seja alunos da Universidade de Coimbra, professores, funcionários, …).
Nesta linha, o centro da APELO de Coimbra irá garantir respostas de apoio psicoterapêutico no âmbito de processos de luto a esta população, continuando a garantir o apoio à restante população em geral.
Com a assinatura do protocolo, o centro da APELO de Coimbra beneficiará do espaço do Instituto Universitário Justiça e Paz, sediado no pólo I, da Universidade de Coimbra.

A Morte é a Curva da Estrada

A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
existir como eu existo.

A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.


Fernando Pessoa