Ninguém sabe o que é morrer. Nem ninguém parece desejar saber…é sempre melhor, mais acessível ao coração, fazer de conta que isso nem existe… Passa-se a palavra aos outros. Como naquela brincadeira das crianças em que o toque (quase fugidio) serve de ponte para “passar a palavra”. Nesse jogo, às gargalhadas infantis junta-se a mão no braço, a rapidez da frase a passar ao outro, a vontade de se libertarem da palavra como se fosse uma praga do “mundo das bruxas”. Também nós, que nos dizemos mais crescidos, tentamos lançar algumas palavras e ideias para um mundo fora de nós. Distante, pelo menos.
A morte parece ser uma sanguessuga que só gosta do sangue alheio, nunca do nosso. E por isso, ainda que de surpresa, por vezes falta-nos o ar e descobrimo-la colada a nós. Afinal… sempre nos toca e atinge o nosso sabor visceral. Não só dos outros. Não é só com os outros.
É estranha e estranhada. Mas entranhada também.
A verdade é que ninguém voltou para a contar, nem para falar do que se vê, de lá, para cá. Ninguém sabe. Ninguém fala. É como se, ao tocar-lhe, tocássemos a nossa ausência, a verdade de uma existência no fim igual, no fim desnudada, no fim sem nada de nada. Igual para todos. Alguém disse, um dia, que a morte é o que nos torna iguais.
Será mesmo? Iguais ou especiais aos olhos de quem nos amou?
A morte. É a morte o nosso motivo maior de movimento e criação. Essa senhora que nos aparece, sem machado, sem foice, sem mantos pretos e desbotados. Apenas aparece e vê-nos sentir um desmame intenso e confuso. E deixa-nos chorar, sem voltar atrás, sem amolecer, sem se alterar. Não se centrifuga na dor dos que ficam, não se antecipa na dor dos que a pedem. Aparece, apenas. Criada. Chamada. Chegada.
Ei-la. Por entre nós, algures embotada. Infelizmente petrificada…cientificada.
Coragem. É o que mais dizem. Ou fazem que dizem, com palavras envergonhadas pelo desconhecimento da sua intensidade. Pedirem-nos coragem quando a perda se assemelha, ainda, atroz parecerá quase ofensivo…
Por vezes acredito que o que dói mais na tristeza não é senti-la, por mais desesperante e inquietante que seja, é a possibilidade (sequer desenhada a lusco-fusco) de não (o não do nunca) desaparecer…ou aliviar. De ser sempre e eternamente assim. O mesmo medo que a morte carrega entre nós: o interminável, indiscutível, insolussionável.
O sorriso pode ser difícil. Efémero. Infundado. No aparecimento, no prolongamento. Num disfarce de um Carnaval de Inverno. Mas um dia, um dia… as cores regressão às máscaras de tal forma que estas se deixam cair naturalmente. Um dia… Acreditem apenas, sempre com a saudade no coração. Ainda que se sintam tão partidos como bonecas de porcelana. Ainda que as pernas não respondem ao despertador, nem à hora, ou sequer aos movimentos, às vontades impingidas pela responsabilidade, pela premência de sobreviver. Um dia… Um dia.
E até esse dia? Compreende-se a ansiedade da pergunta… Até esse dia, permitam-se ao direito de sentir o cansaço. Reconheçam que o corpo chega a estar exausto de vida, de peripécias, de mudanças, de terramotos, de invenções, medos, perdas, sangues, discussões, cores nuas. Ausência. O vazio é como o silêncio: há momentos em que pesa mais do que qualquer pedregulho. Há segundos em que é um barulho, vácuo, ensurdecedor. Nem os tímpanos, já latejantes, aguentam a angústia da ausência instalada pelos corredores de uma casa. Corredores onde antes havia cheiro, pele, pessoas, vida, nomes, vozes. “Longe do olhar, perto do coração”. E antes havia cheiro, sons, vida, discussões, risos… agora… também, na memória, nas histórias contadas, nas fotografias, na povoação da casa, (re)criada.
Se há dias, há momentos, há segundos… insuportáveis... há, também, a descoberta de que ainda se respira. Acordem todos os dias e descubram, no início da dor, que respiram. Quando a dor nos atinge é apenas essa a tarefa que se propõe. E um dia, descobrirão… acreditem que descobriremos juntos… que há algo.
Há. Podemos nem sempre saber o que há. Mas há… deve haver. Do verbo haver, não do verbo existir. Mas um dia, será do verbo existir. E noutro dia, ainda, do verbo acontecer. Directamente do coração da APELO, lanço-vos as rédeas da esperança. Um dia, mais do que sobreviver, haver ou existir, aconteceremos juntos. Em memória, sempre pela memória. Não nos perguntem tudo. Um dia falo-vos das perguntas… Hoje, partilho a esperança de alguma razão para descobrirem um sorriso, ao acordar. Lembrem-se, quando estiverem para adormecer ao pensar no dia seguinte, que nem os contos de fadas nos apresentam a eternidade. Indicam-nos, sim, a “única coisa que pode suavizar os estreitos limites da nossa passagem por este mundo: a formação de uma ligação verdadeiramente satisfatória com outrem”[1]. Na verdade, apenas através das ligações afectivas com outras pessoas é que conseguiremos atingir a suprema segurança emocional.
Ana Rocha S.
[1] Bettelheim, B. 2003. Psicanálise dos Contos de Fadas
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