Teimo em ilustrar-te, em abafar o silêncio da casa com fotografias. Teimo, não consigo fugir, em ter-te constante e eterna, fundida numa vida que se torna difícil de viver sem ti. A tua pele confunde-se com o papel. Encosta-te, intensifica-te assim. Já não sabe a ti, já não cheira ao teu corpo, já não te sinto os sinais marcados tresloucadamente numa pele esfalfada. Às vezes olhava-te (se calhar olhava-te sempre) e imaginava que tinham derramado um balde de tinta castanha sobre ti, um balde cuja tampa teria uns buraquinhos (uns maiores que outros) que te marcariam a casca que sempre me protegera e que se esqueceu, a dada altura, de te proteger…
O impulso de pintar as paredes com a tua presença artificial é maior que eu. Tiro todas as fotografias das outras molduras, é quase inaceitável olhar para outros quaisquer se és tu que me fazes falta. E mesmo depois dele… já nem sei por quem se chora. Ainda assim, recolho-te fervorosamente e descubro que estás em poucas. Devia ter sugado mais de ti, tudo o que pudesse. Deveria ter sido mais obsessiva em captar-te.
Guardo-te aqui comigo, entre quatro rebordos de cores. Encho paredes, enfeito mesas, inundo o quadro de cortiça. E tenho-te, como posso. Como tu me deixas. Só me deixas ter-te assim. Ter-vos assim. Que confusão… tu, vocês. Parece-me, sentidamente, angustiante a constante alternância de termos e realidades.
As fotografias… são tantas, mãe…tantas e tão poucas.
Preciso-te tanto. E aqui não é tanto e tão pouco.
A fotografia já não me chega: como se pode ter um amor platónico? Não sei se somos humanamente capazes. Falta o corpo, não sexual, mas fraternal, harmonioso, benévolo. Falta a companhia, a agremiação. As tuas linhas, os contornos da roupa que se deixam cair sem ti; o som das gargalhadas soltas (como eram fartas e cheias as tuas gargalhadas); as tuas mãos… Estou capaz de as desenhar na perfeição. As tuas mãos, fortes no que a pele guarda, determinadas no alcance, dedos curtos e gordinhos, unhas compridas como baluartes, demonstrações vivas dos genes trespassados entre a família, veias bonitas e escondidas.
Mãos seguras que me estendem o biberão, o outro braço agarra-me com firmeza e, tu, olhas-me como se nunca me tivesses visto (e na verdade só me vias há alguns meses) e eu devolvo o olhar a uma qualquer câmara que nos roubava aquele momento. Um olhar vivo, límpido, de uma bebé feliz. Acredito que sim. Pareces uma menina com um rosto frágil que viria a ser cansado e enrugado, pela flacidez das carnes que se perderam nos litros de quimioterapia. Pareces a minha mãe. A que quero ser. A que tenho medo de não vir a ser. Pareces mesmo tu. Meu amor. Pareço-te, dizem-me. Ainda bem. Meu amor.
Vem… Encosta a tua pele ao papel para te poder abraçar. Assim não consigo, por muito que me esforce (e juro-te que me esforço exagerada, árdua e diariamente para te reinventar e tocar) … assim não te sinto. Será que não te tenho, assim? Não vos tenho?
Eu encosto-me, pronto… já dei o primeiro passo. Faltas tu, agora. Tens faltado, sempre tu. Por favor… toca-me como antes. Permite-me esse abraço quando a noite chega. Permite-me o teu colo (que escabrosa saudade, mãe… do teu colo tão incondicional). Quero-te aqui, para mim, mesmo que por um segundo diário. Um só segundo.
Veste o teu casaco e vem daí… deve haver, algures, uma porta secreta entre esse sítio isolado onde estás e este daqui. Sai das paredes, vence os vidros das molduras. E salta…anda, força. “Upa”, como me dizias. Estou à tua espera. Não encontras a passagem? Eu sei que se depender de ti tu vens… eu sei, mãe. Ele deve querer ficar… precisa de descansar. E eu entendo, sabes? Porque, afinal… afinal ele tinha razão. Isto pode tornar-se tudo muito pesado. Viver, na depressão, dói muito.
Mas descobri, nos outros e em mim, em dias que haveriam de vir, que é possível sobreviver, melhorar. Não abandonar a dor, aliás…ela não nos abandona. Mas (sobre)vive-se com ela. De verdade. Temos apenas de aceitar que o despertador toca de manhã e as pernas tem de se mexer, os cobertores tem de ser empurrados para trás. Toma-se banho. Veste-se a roupa, não temos de ser estrelas de uma passadeira vermelha. Temos apenas de fazer algo, o que nos for possível, para sentir alguma segurança. De dentro de nós e de dentro do espelho. O possível. Não o melhor. Não o exigido. O possível. É este o lema.
Colocas-me desde sempre e para sempre, entre as flores. Porque, aí, ficava perfeita, pensavas tu. Uma fotografia não era, para ti, fotografia de jeito sem flores em algum prisma ocular. Estamos sempre no meio delas… será por isso que me encontro agora contigo através delas? É caso para dizer que podias gostar muito mas não precisavas de te precipitar. Não tão cedo. Desculpa… humor negro.
Não assim. Não agora.
È sempre com se pensa: não agora, não assim. Nunca é tempo. Nunca é dia. Não há momento para (se) perder.
Colocas-me nas flores, nos jardins, nos parques com cores, com sabor a vida, com aromas perfumados e leves, como as saias que gostavas de vestir. Soltas, nas pernas, com o caminhar, mesmo que não envergasses um corpo de medidas escrupulosas. Eram as tuas medidas, no teu corpo, na carne que fez a minha. Era essa barriguinha que, em bebé me adormecia ao calor do teu coração. Quando me contavas que me adormecias assim… deitavas-te e estendias-me (pequenina, a menina…) no teu colo, guardavas-me entre o teu peito e o útero de onde me tinhas lançado. Assim me deixavas ficar, enrolada na manta que ainda hoje guardo. E, acredito eu, assim criámos desde logo uma ligação inquebrável com as armas humanas. Permitias-me aquele sono, aquele adormecer tranquilo, toleravas a minha entrada em ti, mesmo que simbolicamente e do lado de fora. Assim eu te redescobri nos teus ritmos de dentro, pele com pele. O meu coração pequenino e fraquinho (ou não…pelo que se tem vindo a comprovar) a fazer sons com o teu. O teu, maduro, determinado, maternalmente obstinado. Vinhas de ti, para mim, e eu acalmava-me e deixava-me descansar para a noite… descansar de tantas horas de sono e alimentação! Começava a guardar-te dentro do meu baú de recordações. Tu embrulhavas-me com a manta que, mesmo no verão insisto por vezes em dobrar sobre mim. Com um calor de morrer (curiosa a palavra, hum?!) embrulho-me nela só para te imaginar. E aquela manta velhinha e desbotada veste a tua pele, os teus braços sobre mim, o teu corpo que me acolhe quando me sinto tão exausta. Se imaginar, com muita força, ultrapassa qualquer fotografia e alcanço-te… Finalmente.
Finalmente... Inspiro fundo e quase que consigo bater no topo do duodeno.
Tocas-me como me fazias em bebé. E sinto que me abraças, quando aperto os meus braços um no outro e faço de conta que um deles é teu…
O teu e o meu, juntos e entrelaçados. De novo, como se pode.
Tenho-te como posso. Como a vida deixa.
Preciso-te tanto…
Preciso-me tanto, como quando era contigo.
Preciso-te, até para te chorar. Será que não saberão disso?
Ana Rocha S.
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